OPINIÃO: Carreiras de boi, a polêmica
Antes de promover a polêmica, é preciso o diálogo para compreender essa prática, fazendo com que se possa preservar uma tradição local, sem causar prejuízo aos animais

André Liziardi*
Nasci dentro de um ambiente acostumado com as carreiras de bois, meu avô materno era um entusiasta desta prática. Meu irmão herdou essa paixão. Desde criança vi inúmeras cangadas, ouvi tantas vezes sobre polegadas e discussões sobre peso dos bois.
Uma carreira de boi é um evento social capaz acender rivalidades dignas de uma novela quixotesca. Por trás de um touro, há um grupo de pessoas que investem e cuidam do animal para realizar a competição. Esse mesmo grupo, geralmente, tem rivalidade com alguma outra confraria carreirista. O anteceder da carreira é marcado pelo cuidado do animal, jantas entre os parceiros e o seguimento de uma série de códigos sociais, que não são escritos, mas seguidos estritamente pelos envolvidos. No grande dia há o encontro de famílias e amigos, parentes se encontram e conversas são atualizadas, antes do momento da cangada. Confesso que no meu tempo de guri o que mais me interessava nestes eventos era o pastel, dos bois eu não queria nem saber. Acho que, até hoje, o melhor pastel da minha vida é da cancha do Valdir.
Há bastante tempo deixei de ser aquele guri que saracoteava nas carreiras do interior. A vida é feita de escolhas, e uma delas foi me aventurar além daquele ambiente. Com o tempo eu mudei, e muitas outras coisas mudaram. Assim é o mundo. E para tanto, práticas dos nossos avôs também mudam.
Hoje a militância pelos direitos animais está cada vez mai presente. Particularmente eu acho isso ótimo. Eu mesmo já contribuí para resgate e reservas de preservação de animais. Sou contra a exploração de animais de forma inescrupulosa. Sempre que posso me posiciono a respeito. Acho, por exemplo, zoológicos, uma das coisas mais cruéis que existem. Um bando de animais retirados de seu habitat natural para apreciação de humanos. Também reduzi, e muito, o meu consumo de carne industrializada, principalmente frango e porco, depois de ver as condições de criações de animais para consumo de larga escala. Animais em parques para fotos. Contra. Passeio com elefantes. Contra. Carinho e fotos com tigres. Sou contra.
Cito essas duas faces minhas, a do guri criado em carreiras e de alguém preocupado com os animais, para entrar na polêmica lei das carreiras de General Câmara, minha cidade natal. Escrevo isso, pois nada é tão simples e muitas vezes temos que ver o outro para entender seu ponto de vista sobre determinada situação. Li alguns comentários nas redes sociais pedindo que colocassem a “canga em que apoia essa prática”, “se não colocassem a canga, que jogassem numa prisão”, “que é um absurdo” entre outros. Só que muitas destas pessoas, tão preocupadas com o bem-estar animal, não se dão ao trabalho de pensar como a carne que compra no mercado é produzida, nem de visitar uma propriedade no interior do próprio município para ver como os animais são tratados.
A discussão se reduziu ao sou contra e ponto. E já que sou contra vou atacar de todas as formas possíveis, inclusive ao vereador proponente do projeto de lei. Bois são usados para o transporte e preparação das terras na qual são plantados fumo, milho e outras diversas culturas que sustentam – e muito -, a arrecadação de General Câmara. Essas pessoas que estão sendo chamadas de monstros, sem ao menos serem ouvidas, têm uma carinho enorme por seus animais. Creio que esse aspecto precisa ser visto por seus detratores.
Muitos dos que esboçam seu ódio a respeito deste assunto não se deram ao trabalho de ler o que foi aprovado na noite de ontem no Legislativo camarense. Há uma preocupação em garantir integralidade física dos animais, bem como acompanhamento de profissionais capacitados para impedir maus-tratos. Antes de promover a polêmica sobre o assunto, é preciso o diálogo para compreender essa prática, fazendo com que se possa preservar uma tradição local, sem causar prejuízo aos animais. Por isso, dá forma como a mudança se apresenta, creio que deva se dar um crédito às carreiras de boi no interior camarense.
E, por fim, proponho um desafio aos que estão ensandecidos e raivosos com a liberação das carreiras (dentro do que foi determinado em lei), vamos ter a mesma preocupação com animais que se automutilam em zoológicos (dado sua carga de estresse), com animais que são encarcerados em espaços mínimos para produzir a carne que muitas vezes é comprada no mercado (no interior há carneação, mas os bichos são mantidos em espaços amplos), por fim mude seus hábitos, consuma menos e separe um pouco de seus salário para causa animal. Sem esquecer de lutar por direitos mais igualitários para todos nós, humanos.
*Jornalista
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