OPINIÃO | Rock e resistência: sobre o cancelamento dos shows do Ira e a força do coletivo
Se o rock morresse como instrumento de transformação, perderíamos a capacidade de enxergar na música um espelho das lutas que ainda precisam ser travadas

Marcelo Noronha
A recente onda de cancelamentos de shows da banda Ira, motivada por manifestações políticas, reacende um debate crucial: qual o papel do rock na sociedade contemporânea? Se outrora o gênero foi sinônimo de rebeldia e engajamento – como nas letras ácidas do Rage Against the Machine, nas críticas sociais do Pink Floyd ou na ousadia anárquica do Sex Pistols -, hoje parece haver uma percepção de que o rock perdeu sua conexão coma as causas políticas. O episódio envolvendo o Ira, porém, revela que essa relação não está morta, apenas transformada.
O cancelamento de ingressos e o afastamento de patrocinadores, pressionados por vozes coletivas, mostram que a chama da militância migrou parcialmente do palco para a plateia. Se as bandas já não são as únicas portadoras de discursos incendiários, o público demonstra que ainda carrega o DNA contestador do rock. A reação às posições políticas associadas ao Ira prova que, quando unidas, as pessoas podem exercer um poder tangível, exigindo accountability e reforçando que a arte não existe num vácuo, ela ecoa e é ecoada pelo contexto social.
Criticar a suposta “despolitização” do rock talvez seja ignorar essa mudança de protagonismo. A plateia, hoje hiperconectada e consciente de seu poder, tornou-se agente ativo na construção (ou desconstrução) de narrativas. O caso do Ira é emblemático: mais do que um debate sobre censura ou liberdade artística, ele evidencia que a música ainda é um campo de disputa, onde ideias são confrontadas e consequências são reais.
Aos membros do Ira, cabe um agradecimento. Mesmo que involuntariamente, eles fomentaram uma discussão necessária sobre o lugar da arte na política e vice-versa. Que esse episódio sirva não como silenciamento, mas como um convite à reflexão – inclusive para o rock, em todas suas formas, continue a incomodar, provocar e fazer pensar.
Que as guitarras não se calem, mas também que os ouvidos permaneçam abertos. Afinal, se o rock morresse como instrumento de transformação, perderíamos a capacidade de enxergar na música um espelho das lutas que ainda precisam ser travadas. Aos fãs, às bandas e à sociedade, resta lembrar que, juntos, somos mais que espectadores – somos parte da história que o rock ainda pode contar.
(*) Estudante de jornalismo
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