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São Jerônimo, RS,01/09/2025

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João Adolfo Guerreiro

JOÃO GUERREIRO | LFV escreveu a crônica da UTI, Marcelo

A sociedade dos cronistas gaúchos mortos

Reprodução
JOÃO GUERREIRO | LFV escreveu a crônica da UTI, Marcelo Luis Fernando Verissimo

João Adolfo Guerreiro

O jornalista Marcelo Noronha publicou, como de costume, um bom texto dia 18 de agosto no Portal de Notícias, nessa ocasião abordando a internação hospitalar do cronista Luis Fernando Veríssimo e escrevendo que "o cronista que sempre encontrou graça nos absurdos do dia a dia encontraria na UTI uma espécie de palco silencioso", onde "ele transformaria o bip dos monitores em diálogo, faria dos jalecos brancos personagens de um enredo tão cotidiano quanto extraordinário e, certamente, colocaria algum trompete imaginário tocando jazz ao fundo".

E por aí o texto vai, especulando com muita propriedade. Entretanto, Marcelo, acho que LFV já escreveu tal crônica. Quando li seu artigo lembrei dela, pesquisei na estante de livros e a achei: chama-se A Legítima e a Outra e se passa, exatamente, numa UTI. Claro, não é LFV na UTI, mas creio que atende ao que tu escreveu em teu texto. Ela está transcrita ao final desta minha crônica.

Como já sabemos, Luis Fernando Veríssimo faleceu na madrugada de sábado, como era esperado, devido ao seu frágil estado de saúde. Um enorme nome da literatura gaúcha, que conseguiu sair da sombra do legado monumental de seu pai, o escritor Érico Veríssimo. Um feito e tanto, que poucos filhos de grandes nomes conseguem ao trilhar os passos profissionais dos pais. LFV conseguiu, atingindo a mesma estatura paterna nas letras brasileiras. Nem, entendo, preciso falar de sua obra, por demais atual e conhecida e reconhecida pelo público, eis que nos é contemporânea, popular e familiar, faz parte de nossa cultura e cotidiano.

Com sua partida, a crônica gaúcha perde o último de seus grandes nomes e, quiçá, o maior deles - e, mesmo, o maior do Brasil. Moacyr Scliar, Paulo Sant'Ana, David Coimbra e LFV, a sociedade dos cronistas gaúcho mortos. Na versão nacional, da qual LFV igualmente tem cadeira cativa, podemos citar alguns, como José de Alencar (o primeiro), Machado de Assis, Sérgio Porto, Nelson Rodrigues, Fernando Sabino, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Vinícius de Moraes, Carlos Drummond, Paulo Francis, Millôr Fernandes, Jaguar (falecido há poucos dias), Aldir Blanc e muitos outros, eis que o Brasil produziu muitos cronistas de peso e talento.

Agora, recomeçaremos do zero, testando a popularidade possível dos atuais cronistas nesses tempos difusos da escrita virtual, onde os cronistas do papel enfrentam gigantesca concorrência na disputa dos olhos dos leitores, nesse oceano de possibilidades de produção e leitura que a internet proporciona, constituindo um novo paradigma de leitura de crônica. Esse é o tempo presente, do qual LFV escapou enquanto ícone construído no paradigma passado, o do jornal impresso.

Finalizando, antes de transcrever pro Marcelo Noronha a crônica de LFV sobre UTI acima citada, lembro de um episódio que vivi no Morro do Farol, em Torres, e que atestou para mim a popularidade e a relevância de Veríssimo para o povo gaúcho. Caminhava pela calçada em volta do farol e notei algo escrito à tinta nela: "Só acredito naquilo que posso tocar. Não acredito, por exemplo, em Luiza Brunet". Era de LFV, uma de suas muitas que povoam o imaginário das pessoas. A pessoa que a pichou na calçada era uma dessas. Precisa dizer mais sobre Veríssimo?

A LEGÍTIMA E A OUTRA - LUIS FERNANDO VERÍSSIMO

A Outra tanto fez que conseguiu entrar na UTI, onde encontrou a Legítima agarrada à mão dele. Deitado de barriga para cima, com tubos e fios saindo para todos os lados e conectando-o à aparelhagem em volta, ele parecia um avião recém-pousado depois de uma longa viagem. Um Boeing com as turbinas apagadas, mantido vivo pelo pessoal da terra.

- Querido! - gritou a Outra, procurando uma parte dele que também pudesse agarrar.

A Legítima nem piscou.

- O que você fez com ele? - exigiu a Outra.

A Legítima nada.

- Eu sabia que cedo ou tarde você o mataria. - acusou a Outra.

A Legítima, uma pedra.

- Só comigo ele tinha o carinho de que precisava. Você fez isso com ele! Você! Com sua frieza, com sua maldade, com sua...

Então a Legítima falou:

- Nós estávamos fazendo amor.

A Outra recuou como se tivesse levado um choque.

- Mentira!

A enfermeira fez "sssh", mas a Outra falou ainda mais alto.

- MENTIRA!

- Ele morreu nos meus braços - disse a Legítima no mesmo tom triunfal.

- Ele não está morto - corrigiu a enfremeira.

- Morreu nos meus braços, está ouvindo?

- Despeito! Despeito! Ele só fazia amor comigo.

- Sabe quais foram as suas últimas palavras?

A Outra tapou os ouvidos.

- Eu não quero ouvir!

- Suas últimas palavras foram "Agora cruza!".

- Não!

- Sim! Sim! Nós estávamos fazendo o Alicate!

- NÃO!

Um médico apareceu e ameaçou retirar as duas de perto do paciente. Elas não lhe deram atenção. A Outra soluçava.

- Não, O Alicate não!

- Sim! Tudo o que ele fazia com você, ele fazia em casa. Experimentava em você para fazer comigo.

A Outra interrompeu os soluços para espiar por entre os dedos que tapavam seu rosto e perguntar, incrédula:

- A Borboleta também?

- A Borboleta, a Chinesa Assoviadora, o Baile dos Cossacos...

- NÃO!

- Sssshh!!

- Tudo. Tudo! Você era um campo de provas. Eu era pra valer. Com você era treino. Comigo era pelos pontos!

Então a Outra gritou uma palavra indecifrável e avançou num dos aparelhos que cercavam a cama, tentando arrancar os fios, até ser controlada pelo médico e a enfermeira e empurrada para fora do cubículo. Da porta a Outra ainda conseguiu gritar:

- O Salgueiro Despencado ele não fazia com você!

- Fazia! Fazia!

Perfilada ao lado da cama, a Legítima respirou fundo. Depois, sentou-se. Ia pegar a mão dele, mas recuou. Em vez disso, cochichou no seu ouvido.

- Joca?

Insistiu:

- Joca?

Depois:

- Como era o Salgueiro Despencado?

Depois:

- Seu safado. Como era o Salgueiro Despencado?

E o Boeing quieto.

 

Uma boa semana para todos. Cuidem-se, vacinem-se, vivam e fiquem com Deus.




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