João Adolfo Guerreiro
JOÃO ADOLFO GUERREIRO | O Leão da Montanha
Essa carne tá crua e sem sal, Mário!

João Adolfo Guerreiro
Uma das características do meu serviço na Susepe é que trabalhei seguidamente com mulheres e com caras bem mais velhos, tipo quinze ou vinte anos mais velhos, até mais. O Mário era quase vinte. Fomos dupla de posto na Modulada de Charqueadas por uns dois anos, em plantões que duravam 24 horas. Isso foi por 2002, 2004, logo depois de eu chegar por lá, transferido após participar de uma greve na CPA.
Éramos bem diferentes, choque de gerações, principalmente na forma de trabalhar, mas acabamos nos acertando. O típico guarda velho, como denominávamos os veteranos, então. Obviamente, como era muito mais experiente na vida e no serviço, pegava no meu pé, na boa, por algumas atitudes minhas no cotidiano laboral, das quais discordava. Estava acostumado, pois o Mário não fora o primeiro guarda velho com o qual trabalhara e todos agiam mais ou menos dessa forma com os mais novos. Era irônico e tirava sarro e, pra contrabalançar, comecei a inventar alcunhas pra ele. Nunca pegaram e ele nunca ligou, embora já tivesse um apelido no sistema: Leão da Montanha, creio que por causa do desenho animado (imagem acima). Os veteras conhecidos dele, inclusive, o chamavam só de Leão. Por coincidência, após seu segundo casamento, foi morar, vejam só, na cidade de Minas do Leão, aqui na Região Carbonífera.
Sempre trazia consigo um livro velho e surrado, de umas quatrocentas ou quinhentas páginas. Era uma obra técnica ou algo de história, coisa assim. Lia um pouco as primeiras páginas e parava. Disse-me que possuía há tempos aquele livro, trazia-o sempre na mochila, não era muito de ler, mas tentava se concentrar na leitura, de vez em quando. Daí ficava uns dias sem passar os olhos, esquecia o que havia lido e reiniciava. Era sempre assim. Eu achava isso diferente e engraçado, nunca tinha visto coisa igual. O Mario dava risada contando, era muito seguro de si, de seu jeito e das suas opiniões, possuía uma personalidade forte e independente. Por exemplo, no churrasco. Certa feita resolvemos assar uma carne no plantão, era fim de semana, noite, pouco movimento e ele disse "Tudo contigo João, eu asso a carne e tu fica em QAP aí no movimento do serviço". Ok, chegou a hora de comer, a carne tava bonita por fora, mas crua por dentro. "O que é isso, Mário?". "Isso é churrasco, do bom". "Mas a carne tá crua e sem sal!". "Sim, churrasco tem de ter gosto de carne, tem de sangrar, e o sal tira o gosto da carne". Eh eh eh eh, só "descasquei" aquilo e comi.
Outra. Havia dois cães que perambulavam ali pelo nosso posto, um cão peludo tipo collie, o Alemão, e uma cadelinha preta, a Pretinha. Ela emprenhou e nasceu um cãozinho idêntico ao Alemão. Quando ele já tava meio crescidinho, disse "Vou levar pra mim no próximo plantão". O Mário: "É mesmo, é?". Cheguei cedo no plantão seguinte, quatro dias depois, e o cãozinho sumira. Inquiri os colegas que largavam o serviço e eles disseram que o Leão da Montanha havia levado. Fiquei furioso. Esperei ele chegar e saquei: "Tu levou o meu cachorro?" "Teu cachorro? O cachorro era da cadeia". "Mas eu disse que ia levar ele!" "É mesmo, disse. Então, devia ter levado e não dito nada. Eu também queria, levei antes". "Isso que tu fez tá errado!" "É mesmo, é?". Depois ainda trazia fotos do cãozinho lá na casa dele, já taludo, e mostrava pra mim, dando risada.
Não aprendi muito sobre o serviço com ele, pois o Mário, por essa época, com toda a razão, já estava naquelas de se aposentar e ficava só de canto, deixando o tempo passar tranquilamente pra não se incomodar, algo propício a se fazer em nosso posto. Em compensação, sobre a vida, escutando suas histórias, da Susepe, de sua família quando pequeno e de seu primeiro casamento, bah, aprendi muita coisa que não esqueci. Foram N narrativas de uma vida que achei mui interessante, principalmente pelo ponto de vista que o Mario formava acerca das pessoas e situações. Por exemplo, dele contando que, ao conhecer sua primeira esposa, casou meio rápido, tendo de ir tratar de supetão a situação com o seu futuro sogro, que possuía na família fama de severo: "Eu lá, sentado na sala, esperando o homem. Ouvi seus chinelos se arrastando pelo corredor, ele chegou e sentou na poltrona, e ficou me olhando, até dizer "Então o senhor é o seu Mário?' Depois de um tempo, falou: 'Eu não tenho condições de bancar uma festa de casamento neste momento'. Respondi: 'Não estou lhe pedindo nada'." O causo, além de engraçado, escondia uns ensinamentos bem pertinentes sobre a realidade da vida e das pessoas, era destacando isso que ele narrava o acontecido.
Trazia na carteira a foto de uma filha para a qual pagava a faculdade, uma loira de uns vinte anos, muito bonita. Parecida com ele, o Mario era um cara de presença, alemão, olhos azuis, cabelos claros, bigode, um metro e oitenta e tantos, deve ter sido um jovem tri boa pinta. Tava de boa o Leão em Minas do Leão, era visível isso, feliz com a vida e o casamento. Estava de saco cheio da Susepe - 90% dos guardas velhos chegam ao fim da carreira desiludidos com o sistema - só queria se aposentar e pretendia faze-lo por invalidez cardíaca, pois, dizia-me, possuía um defeito no coração, hereditário, herdado do pai e, assim sendo, estaria isento de pagar a Previdência. Não lembro se conseguiu, pois não formávamos mais dupla quando se aposentou e eu estava de licença prêmio, se a memoria não me trai.
Nas vezes que a gente se pechou por aí depois, ou que ele passou lá pela Modulada pra fazer uma visitinha, não lembrei de perguntar. E numa dessas vezes aconteceu algo que jamais esqueci e seguido comento com colegas. Perguntei como era estar aposentado e ele disse: "João, parece que eu nunca fui agente penitenciário". Essas foram, pra minha total surpresa, sem tirar nem por, as mesmíssimas palavras com que um tio meu, igualmente servidor aposentado, respondeu-me a mesma pergunta, poucos anos antes. Matuto até hoje sobre isso.
A última vez que vi o Mário foi no aniversário de cinquenta anos do César La Múmia. Conversamos, tava feliz, o Leão da Montanha. O César morreu mês passado, tinha a minha idade. O Mario, há uns seis meses, estava na UTI. Pisou num prego e desenvolveu tétano. Ontem pela manhã acordei com a noticia da sua morte. O colega Silvano já vinha me avisando que a situação dele não estava boa. Fiquei muito triste. Esperava que o Mário saísse dessa.
"Tu é um cara legal" - dizia-me seguidamente no plantão, um pouco literalmente e outro pouco ironizando, afirmando que eu era muito certinho e muito bonzinho, o que, no sistema, era meio passo pra ser feito de bobo. Ele tava certo, nos dois sentidos. O Mário não dourava a pílula, dizia na lata. Eu também, mas ele, mais experiente, me ganhava na palavra na maioria das vezes. Eu era aprendiz de feiticeiro e aprendi muito assim, fiquei curtido.
Pra finalizar, vou contar um outro causo onde o Mário me deu uma ganhada legal. Chegou um colega mais novo lá na Modulada, que conheci na greve, meu camarada, mas me deu um branco na hora e esqueci o nome dele. O cara dizendo João pra lá e pra cá e eu fazendo ginástica na conversa pra não ter de dizer o seu nome. Entrou e então falei pro Mário anotar o seu nome na saída, pois eu tinha esquecido e ficara envergonhado. "Pode deixar comigo" - concordou. Eu ouviria o nome e dai me despediria nos conformes. Tudo certo. Na saída, foi ele chegar e o Mário: "Colega, me diz aí o teu nome pra mim anotar na planilha, que o João Adolfo esqueceu e ficou com vergonha de te perguntar". O colega me olhou longamente, eu sem ter onde me enfiar e o que dizer, e respondeu: "É Oberti" - outro saudoso colega, lutador, que se foi muito cedo, daria uma crônica daquelas sua passagem pela Susepe.
"Ô Mário, pra que tu fez isso?" "Ué, não é tu que é todo certinho? Fiz igual, não ia mentir pro cara" - respondeu, dando risada da minha cara brava e envergonhada. Mário Arnoldo Muller, eu gostava de ti, valeu por tudo. Tu também era um cara legal. Fique de boa aí com Deus, rindo e rugindo sobre as montanhas celestiais do Senhor.
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